domingo, 1 de março de 2015

" O MEU CORAÇÃO BATE PELA GUINÉ-BISSAU" CINZIA D'AURIA

Cinzia D’Auria, antropóloga italiana, é uma frequentadora da África e da sua cultura, sobre a qual procura lançar um olhar diferente daquela a que a Antropologia clássica nos habituou: a de ver as culturas dos outros como simples objectos de estudo. É com esse olhar diferente, isto é, com uma atitude interactiva em relação às culturas africanas que tem vindo a colaborar com Filomeno Lopes em projectos de educação para uma visão crítica das realidades sócio-culturais. E isto através de imagens e música, unidas em documentários audio-visuais. Um projecto que já a levou várias vezes à Guiné-Bissau, País pelo qual bate o seu coração - disse na rubrica "África.Vozes Femininas" 



Há vários anos que, eu Dulce Araújo, me cruzo com a Cinzia D’Auria na nossa Redacção. Ela saúda sempre com um sorriso e um ar muito tranquilo. Senta-se e espera um momentinho para falar com o Filomeno acerca dos projectos que levam avante conjuntamente.

Então, para além de ter já visto alguns documentários por ela realizados, lembrei-me de a convidar a falar da sua visão da África neste espaço dominical sobre as mulheres. Ela preferiu falar em italiano, pois que não se sente ainda muito à vontade no português ou mesmo no crioulo que, no entanto, compreende um pouco.
Cínzia começou por nos dizer que é formada em Ciências Sociais com orientação antropológica e que sempre sentiu o desejo de estudar outras culturas e de romper com essa série de estereótipos sobre a África, sobretudo, que é muitas vezes apresentada como uma África indigente, incapaz de resolver os seus problemas sózinha. Algo que sempre a perturbou imenso:

 “Essa visão sempre me perturbou de algum modo, porque não conseguia aceitar que um Continente tão rico em termos de identidade e de tradições fosse representado de forma tão negativa no imaginário ocidental, europeu. Daí nasceu, portanto, uma sede de justiça social no sentido de querer dar uma visão da África diferente daquela que tinha recebido dos estudos antropológicos; África e não só, porque os meus estudos eram ligados a povos indígenas, todos aqueles povos que eram sempre considerados à margem da história europeia e ocidental”.

Terminados os estudos, Cínzia passou a usar a câmara de filmar e a máquina fotográfica para procurar transmitir uma visão diferente da África. Foi assim que realizou um documentário sobre a religião Vudu, típica de alguns países africanos, como o Benin, o Togo, e foi apresentando esse filme num Festival que conheceu o Filomeno Lopes:

“O encontro com o Filomeno aconteceu num festival de cinema em que tinham seleccionado um documentário que eu tinha realizado sobre a África (Togo e Benin) através do qual tinha procurado dar uma visão diferente da África em relação ao Vudu, religião tradicional”

Já fazias, portanto, documentários como forma de expressão?!

“Sim, sim, digamos que o meu endereço de estudos foi Antropologia  da Comunicação Visual e sempre utilizei a imagem, o documentário para interpretar as outras culturas porque a imagem é uma forma de comunicação muito mais directa e imediata”

Uma sintonia de ideias e abordagens da cultura africana entre a Cínzia e o Filomeno que acabou por dar vida a uma relação de trabalho criativo. Ele com a música, ela com o documentário fílmico. Uma união de dois instrumentos pedagógicos num só, para formar, estimular as pessoas a reflectir criticamente, um instrumento que Cínzia considera mais adequado porque toca o âmago das pessoas e apazigua mesmo as formas de conflitualidade que podem assim ser colocadas com normalidade em forma de debates.
“A partir disso assumimos juntos esse desafio realizando, por um lado, uma série de documentários que enfrentam temáticas diferentes, entre os quais documentário sobre a liderança: que liderança para a África de hoje?, e outros sobre a importância da memória histórica para  a África (e não só) para se poder empreender o caminho em direcção ao Renascimento africano. E com a realização desses documentários empreendemos uma espécie de caminho, mesmo na Guiné-Bissau, caminho que nos levou a diversos lugares da memória histórica da Guiné-Bissau, entre os quais Cassaká, Ponte Balana, Cacheu, etc.

Projectamos o documentário, fizemos um concerto e, depois houve debate com as pessoas localmente. E devo dizer que isto deu lugar a momentos de grande entusiasmo, de grande interesse porque constatamos que realmente  o método que estamos a adoptar e que, na realidade, é um método experimental, tinha suscitado muito interesse e todos participaram activamente e de algum modo tinha-se criado um diálogo, um pouco à maneira tradicional da África, do Djemberém, e todos eram levados a procurar resolver as situações conflituais para empreender um caminho em direcção a um futuro de paz e reconciliação”
Esta colaboração com o Filomeno já levou a Cínzia várias vezes à Guiné-Bissau e desde o início teve uma impressão positiva do país:

“A impressão na Guiné-Bissau foi inicialmente muito forte.  O que mais me tocou foi a relação com as pessoas, no sentido de que estavam muito motivadas. E o que notava é que deviam ser, de algum modo,  estimuladas. Era necessário um desafio cultural que pudesse dar a possibilidade de fazer emergir as potencialidades que parecem estar adormecidas. Mas havia uma grande força, uma grande vontade de mudança e, por isso, achei que é preciso dar instrumentos que orientem essas mudanças em direcção ao Renascimento africano. Mesmo na Universidade "Colinas do Boé", onde projectamos os documentários, os estudantes participaram activamente e faziam muitas perguntas que serviam a eles próprios para um crescimento interior e para compreender melhor seja o próprio país seja a relação com outros países”.
Cínzia já visitou vários países da África: Benin, Togo, Mali, Etiópia, e através da Associação italiana Zoé, de que é membro, faz outros trabalhos sobre os países do Sul do mundo, mas o seu coração está mais virado para a Guiné-Bissau…

“Na realidade o meu coração está com a Guiné-Bissau porque se trata de um projecto, a meu ver, muito importante no sentido de que trabalha sobre a cultura, a formação e  são na minha opinião os projectos mais difíceis porque requerem muito tempo antes que se chegue a uma solução; é uma procura continua”.
Como foi a passagem dos livros para a realidade?

“Digamos que os textos da Universidade inicialmente eram sobre a Antropologia clássica que me deixava muito perplexa porque davam noções ligadas à tradição colonial; então procurei seguir caminhos que na gíria são identificados como a nova antropologia cultural que procura dar uma visão completamente diferente não só da África, mas também doutros países; enquanto que a Antropologia clássica tendia a considerar as culturas como objecto de estudo; eu não conseguia aceitar isso porque objecto significa coisificar  o que estás a estudar, quando na realidade o que acontece é uma troca contínua de emoções e sentimentos. Daí esse reinventar a Antropologia, estas novas vias, segundo as quais o antropólogo não deve estudar o objecto, mas deve interpretar através duma comunicação dialógica com as outras culturas. Disso nasceu, portanto a necessidade de adoptar uma metodologia diferente e de ter uma definição diferente do conceito de identidade que não seja algo fixo, imutável, como faz crer a Antropologia clássica, mas algo constantemente em mutação e transformação. Daí uma concepção diferente também da História, quer dizer a própria África era considera um continente sem história e nisto a filosofia de Hegel teve uma notável influência. Portanto, procurei  aplicar essas novas teorias da Antropologia à realidade concreta da Guiné-Bissau. E é verdade que a África, a própria Guiné-Bissau, é um cruzamento de culturas e identidades, e não se pode pensar numa identidade fixa, imutável e pretender preservá-la como tal. Isto seria um fechamento que levaria a uma negação da própria cultura.


O projecto empreendido com o Filomeno é, no fundo, uma demonstração prática, no terreno, destas novas vias da Antropologia, vias que me levaram a fazer uso de instrumentos como a câmara de filmar ou a máquina fotográfica para poder entrar em contacto com outras culturas e fazer referência àqueles elementos da pessoa que são a emoção… e que na Antropologia clássica eram eliminadas porque – dizia-se – podiam falsificar a objectividades da cultura… Mas estes elementos entram todos em jogo e dão a possibilidade poder acolher aqueles elementos mais profundos de uma cultura para a poder compreender na sua profundidade”.

E a Antropologia como ciência mudou neste sentido que está a dizer ou antropólogos como tu que vão nesta linha são de algum modo marginais?

“Digamos que infelizmente, na Itália, a Antropologia é ainda de tipo tradicional. É difícil encontrar pessoas ou professores que tendem a seguir um novo caminho. Com efeito, esta nova linha é de antropólogos como Cliford, Marcus… que são antropólogos dos Estados Unidos. Por conseguinte, diria que, por um lado, (e é uma crítica que faço à Universidade) é mais fácil permanecer ancorados nos velhos conhecimentos do que elaborar novos que, no entanto, levam a uma maior abertura em relação aos outros povos e podem até ajudar na identificação de possíveis soluções para aquilo que é o problema das migrações que temos vindo a enfrentar nos últimos anos. Isto para dizer que algumas pessoas conseguem seguir aquilo que é  a nova antropologia, mas a tendência, infelizmente, na minha opinião, é a de seguir a antropologia clássica. É um trabalho mais pessoal, isso de abrir novos caminhos que, de forma experimental, dêem a possibilidade de ter uma leitura diferente daquele que é a realidade actual”.

Com o Filomeno colaboras há cerca de 10 anos nestes projectos de educação na Guiné-Bissau. Já se vêem resultados?

“Digamos que o trabalho é longo. Sim, nota-se uma maior disponibilidade e muitas vezes nos pedem para ir realizar esses encontros de reflexão. Devo dizer que desde a primeira vez que estive na Guiné-Bissau tenho notado mudanças positivas em termos de disponibilidade tanto das pessoas como de instituições… Tudo isso tendo em conta que no arco de 10 anos houve diversos golpes de Estado, de modo que da última vez que estivem lá, em 2013 vi ainda muito mais disponibilidade das pessoas à mudança e isto encheu-me de alegria, pois quer dizer que as coisas estão a mudar realmente e que há vontade interna de mudar, de chegar a uma cultura de paz, de reconciliação no país. Devagar, devagar grandes passos estão, portanto, a ser dados. E nós procuramos no nosso pequeno continuar com esses encontros para estimular as pessoas a reflectir e a desenvolver o sentido crítico em relação às problemáticas do país…

“Através do documentário são tratados temas como a liderança. Ao mesmo tempo, mesmo na canção há uma série de palavras que se referem à liderança ou à história da Guiné-Bissau. Daí se desenvolve depois o debate e nascem perguntas, as pessoas se interrogam sobre porque é que aquilo que foram os princípios, os valores, por ex. de um líder como A. Cabral não encontram lugar na sociedade actual, em que é que se errou, o que se pode fazer….Por isso, diria que é um debate muito construtivo, sobretudo porque ajuda as pessoas a mudar o modo de pensar, mas em sentido crítico, a interrogar sobre si mesmos e sobre os outros: o que se pode fazer para melhorar a própria situação e a do país. O que notei é que tem um impacto muito directo, um simples debate académico não consegue talvez atrair muito a atenção das pessoas, sobretudo dos jovens.”

Cínzia, estamos na rubrica “África.Vozes Femininas”. Em todas essas suas viagens à África, que visão tens vindo a construir da mulher em África?

 “Olha…, dou-te somente este exemplo que me tocou muito: ao longo deste percurso que temos vindo a fazer sobre a memória histórica, fomos a Madina do Boé, o lugar onde foi proclamado a independência da Guiné-Bissau e ali encontramos uma senhora, uma ex-combatente que nos acompanhou ao lugar onde havia um primeiro destacamento de Amílcar Cabral. Essa mulher tocou-me muito porque estava profundamente emocionada e disse: “vocês vieram até aqui para valorizar a memória de Amílcar Cabral”. E enquanto dizia essas palavras chorava, e continuava a falar dizendo: “estais a ver o estado em que está o nosso país? Não era isto que Amílcar Cabral queria!”. Isto comoveu-me também a mim, porque pensei: olha esta mulher que combateu para a independência e está hoje num país que não corresponde àquilo que era o ideal de Amílcar Cabral… que participação, que sentimento, que força ela tem dentro de si… Então, a meu ver, a figura da mulher representada por essa senhora é uma figura muito forte, uma figura de mulheres que fizeram parte do processo de mudanças do país, e não são mulheres marginais que estão à margem do processo de mudança do país. Esta, digamos, foi a minha experiência, um envolvimento que não vi noutros países onde estive e onde as mulheres me pareciam  mais relegados à…. Bem, talvez tenha sido influência de Amílcar Cabral que envolvia as mulheres no processo de mudança do país”  (DA)