Um álbum de fotografias está em cima da mesa e não se deve
abrir. "Essas imagens impressionam e já puseram muitas `fanatecas` a
chorar", conta Fatumata Baldé.
As "fanatecas" são as mulheres que fazem a excisão
a outras mulheres. O álbum mostra os ferimentos e malformações que surgem mais
tarde às que foram sujeitas à Mutilação Genital Feminina (MGF) e aos seus
filhos.
Quando ainda alguém tem dúvidas sobre os males provocados
pela MGF, "logo desaparecem ao ver estas fotografias", descreve.
Fatumata lidera o Comité Nacional para o Abandono das
Práticas Nefastas na Guiné-Bissau que tem levado "fanatecas" de todo
o país a abandonar a atividade.
A Assembleia Nacional Popular (ANP) guineense aprovou em
2011 uma lei que proíbe a excisão, mas agora há um movimento liderado por um
punhado de homens que quer abolir essa legislação.
Para o efeito, este grupo já entregou um abaixo-assinado no
parlamento, em que dizem reunir 12 mil subscritores que querem que a MGF volte
a ser uma prática livre.
Porquê? Iaia Rachido, 64 anos, acredita que a excisão
"não faz mal a ninguém". E se lhe pedissem para cortar nele próprio?
Diz que "não", que não deixava. "Mas nas mulheres também não se
corta tudo: cortam um pouco, como o profeta ensinou".
Para este homem, que dirige uma mesquita em Bissau e é filho
de um "sábio" muçulmano, a mutilação é um corte com medida divina --
e quando confrontado com ferimentos, casos de morte provocada pela excisão ou
com a interpretação do Corão (livro sagrado muçulmano) livre do corte, diz que
tudo isso "não corresponde à realidade".
Desvaloriza também as cartas e convenções internacionais
(das Nações Unidas e suas agências, como a Organização Mundial de Saúde, entre
outras entidades) que condenam a prática.
"Quando há americanos ou europeus que fazem uma regra,
toda a gente vai atrás da regra", queixa-se, considerando, por isso, que
essas convenções não deviam ser consideradas universais.
Para ele, não deve ser assim e chega a dar um exemplo que
contraria a carta dos Direitos Humanos. "Fala do direito da criança em
escolher a religião, mas nós, muçulmanos, não nos importamos com isso".
Mesmo que se diga que a lei é para toda a gente, "eles
sabem quem é que pratica isto", refere Iaia Rachido, apontando o dedo ao
poder político.
Por outro lado, "na Guiné-Bissau há crimes de droga, de
sangue e corrupção. Até à data ninguém foi julgado, mas há duas senhoras que
estão a cumprir pena por praticarem a excisão".
"Deviam prender primeiro aqueles que cometeram crimes
mais graves", acrescenta.
Não há argumentos que demovam Iaia Rachido. A conclusão é
sempre esta: "no nosso entender [a MGF] é obrigatória", de acordo com
os preceitos religiosos e com a tradição em que se incluem mães, irmãs e até as
cinco filhas de Iaia.
Mas "pode haver quem entenda que é facultativo".
"Quem quiser faz, quem não quiser, não faz" e o
movimento até aceita isso, mas o objetivo é acabar com a proibição: "vamos
continuar pela via legal, longe da violência, para conseguir a abolição desta
lei".
Apesar de desvalorizar a importância dos intervenientes,
Fatumata Baldé considera gravíssima a posição assumida pelo grupo e pede a
intervenção do Procurador-Geral da República (PGR) da Guiné-Bissau.
"O PGR devia chamar esse senhor para lhe perguntar o
que se está a passar", porque está a instigar a população "contra uma
lei adotada por um Estado. Ele merece ser chamado ao Ministério Público".
"Estamos num país democrático em que cada um pode expressar-se livremente,
mas sem contrariar as leis", sublinha.
Fatumata Baldé acredita que a oposição à excisão na
Guiné-Bissau e a caminhada com vista à sua erradicação já chegou a um ponto sem
retorno: a lei passou no parlamento quase por unanimidade e a os principais
líderes islâmicos rejeitam que a religião obrigue à MGF.
Os mais recentes indicadores revelam uma diminuição da
prática, apesar de continuar a ser expressiva.
Segundo o Inquérito aos Indicadores Múltiplos (MICS) de
2010, promovido pelo Governo e Nações Unidas, a excisão afetava metade (50%)
das mulheres da Guiné-Bissau com idades entre os 15 e os 49 anos, valor que
desceu para 45% no MICS 2014.
Há um senão: com medo da lei, há cada vez mais pais a
sujeitar as filhas à MGF quando ainda são bebés, para haver menos
possibilidades de denúncia.
E aos recém-nascidos nada resta senão depender dos adultos,
num país onde ainda se defende a mutilação.
Fonte. LUSA