Fátima Proença, João José Fernandes, Susana Réfega, João Martins, João
Rabaça e Mónica Frechaut são cidadãos globais que viraram a vida do
avesso porque "estamos todos neste planeta e precisamos uns dos outros".
Fátima Proença, Directora executiva ACEP, 61 anos
Foi
um dos maiores desafios que Fátima Proença já enfrentou: unir um
conjunto de organizações, a maior parte das quais guineenses, e com elas
persuadir o Governo da Guiné-Bissau a fechar a mais antiga esquadra da
capital, que foi uma prisão, que era um “símbolo de opressão, de
violência política”, e a cedê-la para que fosse transformada num espaço
de cultura de direitos humanos.
O lugar, na parte velha de Bissau,
desmonta, por si só, ideia feitas sobre a Guiné-Bissau — “um país que
não funciona, sem instituições, à espera da ajuda internacional”. “Foi
ali que encontrámos interlocutores, pessoas que querem lutar pela
liberdade, pela justiça social e que se organizaram para isso”, diz.
A
União Europeia nem sequer concedia financiamento para projectos de
direitos humanos no país. O consórcio liderado pela Associação para a
Cooperação entre os Povos (ACEP) e a Liga Guineense dos Direitos Humanos
(LGDH) obteve financiamento da Cooperação Portuguesa e abriu a Casa dos
Direitos no início de 2012. Volvidos dois meses, houve um golpe de
Estado. “Os dirigentes da Liga estavam lá dentro, o quartel-general
estava mesmo em frente, os militares perseguiam pessoas na rua, mas
ninguém foi lá procurá-los”, recorda. “A Casa dos Direitos já é.”
Não
tinha uma relação próxima com a África imaginada, como era comum no
Portugal da década de 1970. “Não tinha necessidade de defender uma
África que tinha que ver com Portugal.” Contava 18 anos quando começou a
colaborar com o Boletim Anti-Colonial. A sua primeira tarefa foi dactilografar um relatório sobre o massacre de Wiriyamu (Moçambique, 16 de Dezembro de 1972).
Entrou no sector da ajuda ao desenvolvimento por via do Centro de
Informação e Documentação Amílcar Cabral, actual Centro de Intervenção
para o Desenvolvimento Amílcar Cabral (CIDAC), associação nascida logo
em Maio de 1974, na sequência da luta pela libertação. Começou como
voluntária.
“Foi um processo natural”, diz Fátima Proença. Não
teve, como tantos outros, de fazer um corte violento com a família, com a
profissão ou com o país. “O que sou hoje tenho sorte de ter começado a
ser em pequena, quando a minha mãe me contava histórias sobre um mundo
longínquo.”
Aterrou pela primeira vez em África em 1983. Ia passar
dois meses em Bissau a dar formação sobre documentação a técnicos das
Forças Armadas e dos vários ministérios. “Foi um dos maiores processos
de crescimento que vivi”, conta. Esforçou-se para “entender um país, uma
cultura, que só conhecia em teoria, à distância”. E percebeu que iria
ficar ligada a África para sempre.
Regressou mais depressa do que
pensava. Regressou volvidos dois anos, com o marido, para passar um ano
inteiro a trabalhar como cooperante do Estado português. “Trabalhei num
projecto novo, o início do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisa da
Guiné-Bissau, com pessoas fora de série, que me ajudaram a perceber
quais eram os meus limites, do que era ou não capaz.”
Era grande a
tensão na Guiné-Bissau em 1985-1986. Houve uma tentativa de golpe de
Estado que culminou com detenções, torturas, fuzilamentos. Tentando
sentir a espessura das coisas, Fátima Proença enquadrava tudo no
processo de transição da luta armada pela independência para a
construção de um estado civil. “Há ali uma legitimidade ao nível das
armas que é difícil de transformar…”
Há 30 anos, o sector estava a
despontar em Portugal. A Plataforma Portuguesa das Organizações
Não-Governamentais de Desenvolvimento foi formada por 13 entidades com
mais desejo do que experiência de acção humanitária e cooperação para o
desenvolvimento. Coordenava-a Eugénio Anacoreta Correia.
Fátima Proença pediu reforma antecipada ao Ministério do Comércio,
onde começara a trabalhar ainda estudante de Economia, e dedicou-se a
tempo inteiro ao CIDAC. Só de lá saiu em 1996, a caminho da ACEP, que
fora criada para trabalhar na integração dos imigrantes africanos em
Portugal e ambicionava passar a actuar nos seus países de origem.
Era
mais uma etapa do mesmo caminho. Ia ajudar a construir sociedades mais
democráticas, mais abertas aos “outros”, nos países de língua oficial
portuguesa. Ia fazê-lo numa lógica de “educação para a igualdade”, não
de “tolerância paternalista”. Partia do princípio de que todos podiam
ajudar a “fazer mudança”. E ainda parte. “Não queremos falsos êxitos
alimentados por pessoas que estão de passagem, que têm de fazer as
coisas a correr”, explica. “As pessoas que estão lá têm de ter as
rédeas, têm de dominar os processos, têm de estabelecer connosco uma
relação de poder dizer ‘não’.”
Através dos seus projectos de
comunicação, que amiúde envolvem jornalistas e artistas, a ACEP tenta
fortalecer laços entre ONG, sensibilizar opiniões públicas, desmontar
visões simplistas. “Não temos uma pressa desalmada de mostrar
resultados, até porque muitas vezes os nossos resultados são invisíveis.
Têm que ver com o que está na cabeça das pessoas, com capacidade de
arriscar, de trabalhar em conjunto. E isso leva tempo. Temos de
conquistar esse tempo. Com tempo, podemos cozer um elefante numa
panela.”
Pode ser estafante. Há uma “pesada carga burocrática e
administrativa” relacionada com obtenção de financiamento, sobretudo,
junto da União Europeia, mas também nas instâncias nacionais. E isso,
diz, “exige um profissionalismo que desvia do que deve ser o centro da
actividade”.
Talvez fosse mais fácil se trabalhassem em áreas mais
palpáveis como a vacinação ou a distribuição de comida. Nunca foram por
aí. “Somos uma associação de gente que trabalha com associações de
gente que tem o mesmo tipo de preocupação que nós. Somos cidadãos a
tempo inteiro, digamos assim. Procuramos tornar algumas utopias
possíveis.”
João José Fernandes, Director Executivo Oikos, 45 anos
Na
década de 1990, quando João José Fernandes começou a trabalhar, era
clara a divisão Norte-Sul. “Os problemas de desenvolvimento viam-se nos
países do Sul, embora relacionados com a ordem internacional, a que as
políticas de comércio dos países do Norte não eram alheias.”
Foi
com base nessa visão do mundo que se delinearam os Objectivos do
Desenvolvimento do Milénio, aprovados pela Organização das Nações Unidas
(ONU) em 2000, agora prestes a expirar. Não por acaso, os Objectivos do
Desenvolvimento Sustentável, que estão a ser aprimorados para a
assembleia geral de Setembro, destinam-se a todos os países, ainda que
com metas distintas.
Onde já vai o mundo da juventude de João José
Fernandes. Quase não havia ONGD no Portugal dos anos 1980 em que ele se
fez seminarista. “O seminário era o mais parecido que havia”, diz.
Problema: queria ajudar a construir um mundo sem pobreza nem injustiça,
mas não queria evangelizar.
Crescendo na fronteira luso-espanhola,
via melhor canais espanhóis do que portugueses. Atraía-o mais a América
Latina do que África. “Era um território efervescente, quer em termos
políticos, quer teológicos.” Saiu do seminário, decidido a ir para o
Peru. Queria trabalhar com comunidades indígenas, nos Antes, no pico dos
confrontos entre militares e guerrilheiros do Sendero Luminoso.
Tratou
de adiar o serviço militar obrigatório. De repente, chegou-lhe às mãos
uma carta de divulgação dos Leigos para o Desenvolvimento, organização
católica que actua através de voluntários. Entusiasmou-se: em 1990,
estava em São Tomé e Príncipe a viver as primeiras eleições
multipartidárias e ele a ensinar Filosofia a adultos no Instituto
Diocesano de Formação João Paulo II.
Era certo o seu gosto pela ajuda ao desenvolvimento, mas tinha de
terminar os estudos teológicos e filosóficos iniciados em Évora. Durante
anos, conciliou-os com o apoio, ainda que à distância, às missões dos
Leigos para o Desenvolvimento em África. Depois, entrou na Oikos —
Cooperação e Desenvolvimento.
Naquele ano, 1994, o sector deu
alguns passos decisivos: a Assembleia da República aprovou a primeira
lei das ONGD; nasceu o Instituto de Cooperação Portuguesa, a quem cabia
propor e executar a política de cooperação portuguesa, funções desde
2012 exercidas pelo Instituto Camões.
Associação ecuménica fundada
em 1988, a Oikos dedica-se à acção humanitária, à cooperação para o
desenvolvimento, à influência pública. João José Fernandes entrou no
gabinete de projectos. “Participei na abertura de uma série de missões,
como a das Honduras, a de Timor-Leste, a de Cuba.”
Depressa
assumiu a liderança dos projectos. Desdobrava-se em contactos.
Supervisionava equipas. “Era solteiro. Trabalhava fora de horas, não
tinha fins-de-semana, viajava com frequência. A partir de certa altura,
temos de encontrar equilíbrio entre o que fazemos e o que somos…”
Abrandou
ao tornar-se director executivo, já lá vão dez anos. Tem hoje “menos
responsabilidades operacionais e mais responsabilidades de gestão”. E a
verdade é que, depois de “tantos anos de hiperacção”, na redução da
pobreza, na prevenção de catástrofes, na segurança e soberania
alimentar, no desenvolvimento rural, na prevenção, adaptação e
suavização das alterações climáticas, sentia que precisava de reflectir.
Inscreveu-se num doutoramento sobre alterações climáticas e políticas
de desenvolvimento sustentável e está a trabalhar numa tese sobre
segurança alimentar. E, pela primeira vez, está a devotar mais atenção a
Portugal.
Os donativos em Portugal estão a baixar desde o início
do século. A partir de 2008, com o adensar da crise económica e social,
as ONGD começaram a ouvir perguntar: “Por que não fazem trabalho social
em Portugal?”
Sim, o mundo mudou. Emergiram economias a sul.
Ganharam visibilidade bolsas de subdesenvolvimento a norte. E na Oikos
uma escolha teve de ser feita: “Insistir no discurso de sensibilização
para a cooperação para o desenvolvimento baseada no paradigma Norte-Sul
ou repensar tudo. Como outras ONGD, alargou a acção a Portugal. Está,
por exemplo, a fazer inquéritos e análise documental para lançar as
eventuais bases de uma política pública multissectorial (agrícola,
educativa, social, ambiental, saúde) destinada a garantir o direito à
alimentação adequada. E a criar respostas práticas que passam pela
agricultura familiar e pelos circuitos curtos de comercialização.
“Em
Portugal, não há uma estratégia integrada de segurança alimentar e
nutricional”, diz. É o único membro da Comunidade dos Países de Língua
Portuguesa sem um plano desse tipo. “Que respostas existem? Bancos
alimentares e cantinas sociais [para assegurar que todos têm duas
refeições por dia]. Algo não está certo…”
João José Fernandes
espera que o Ano Europeu do Desenvolvimento, que agora se assinala,
sirva para encarar esta nova realidade. “Ou conseguimos discutir o
desenvolvimento como um todo ou dificilmente em países como Portugal o
debate será feito”, acredita. As preocupações dos portugueses estão
viradas para dentro. “Ao mesmo tempo que reivindicamos solidariedade do
Norte da Europa connosco, também temos de reivindicar solidariedade de
Portugal com outros parceiros. Isto não é só receber.”
Susana Réfega, Directora executiva FEC, 42 anos
Anima-se,
em particular, com o trabalho que está a fazer na educação. “Sendo um
sector muito clássico e convencional, tem grande impacto na vida das
pessoas, dos países.” “A Guiné-Bissau, por exemplo, tem muitos
professores sem formação. Muitas vezes, começam as frases em português e
acabam-nas em crioulo.” A língua portuguesa, sendo oficial, é pouco
falada no país. Cada grupo étnico tem o seu dialecto e a língua franca é
o crioulo. “Os miúdos chegam à escola sem saber falar português, sem
nunca terem estado num contexto educativo.”
A Fundação Fé e
Cooperação (FEC), fundada em 1990 pela Conferência Episcopal Portuguesa e
outras estruturas católicas, dá formação a professores, a directores, a
inspectores integrados no sistema de ensino formal na Guiné-Bissau. O
programa inclui matemática, ciências, português, pedagogia, educação
para a cidadania e para a paz. “Durante anos, trabalhámos só no ensino
básico. Há quatro anos, começámos a trabalhar na educação de infância.
Agora, no ensino secundário.”
Nem sabe como tudo isto começou.
Ainda miúda, depois da missa, ouvia missionários de barba comprida a
falar em missões distantes. De vez em quando, dava por ela a trautear
canções feitas para combater grandes fomes. Do They Know It’s Christmas?, gravado no Reino Unido. We Are The World, gravado nos EUA. Um abraço a Moçambique, gravado em Portugal. “Não houve uma revelação”, diz. “Isto é um puzzle
que se vai construindo.” Tanto que se imaginou a cuidar de vacas e de
bezerros. Estudou Medicina Veterinária. E ainda exerceu dois anos antes
de perceber que talvez se tivesse enganado.
Começou a fazer
voluntariado no início do secundário. Escreveu cartas a presos políticos
no Chile, então debaixo do poder ditatorial de Augusto Pinochet,
visitou doentes no Hospital Dona Estefânia, perto da Faculdade de
Medicina Veterinária, e entreteve miúdos na Casa do Gaiato. Tinha uma
enorme vontade de ser útil e sentia que em África podia fazer uma
diferença maior.
Inscreveu-se n’ O GAS’África — Grupo de Acção Social em África e
Portugal e preparou-se para avançar para Angola. Não foi logo. A guerra
civil intensificou-se. Passou o Verão no Bairro da Serafina, em Lisboa.
“Foi uma grande lição”, sem sair da sua cidade, estar numa “realidade
completamente desconhecida”. “Percebi que é indiferente o sítio onde se
está desde que se faça alguma coisa.”
Decorria 1997 quando partiu
para Angola. Foi com os Leigos para o Desenvolvimento. O domínio
religioso não lhe fazia confusão. “Para mim, fazia sentido associar a
dimensão de fé”, recorda. Tinha por missão montar um aviário em
Benguela. “Havia assaltos a tudo o que era produção animal.” Pôs-se a
trabalhar com mulheres num bairro feito de gente que fugira aos
confrontos. “Foi um baque”, recorda. “Nunca tinha estado em África.
Atirei-me de cabeça. Fui por dois anos.” Estava dentro de um perímetro
de segurança, mas senti muito a pressão da guerra civil. Os pais viviam
numa inquietação permanente por causa dos combates, das doenças, das não
notícias. “É preciso ver que na altura não havia telemóveis. No
primeiro ano, não tínhamos Internet.”
Entrou tanto naquela
realidade que só com muito custo se readaptou à Europa. E ainda fez um
doutoramento em parasitologia antes de abandonar por completo a
veterinária e se entregar à cooperação para o desenvolvimento. “Eu
queria sentir que o que estava a fazer me fazia sentido, era útil,
honesto, sério.”
Fez um mestrado em cooperação, desenvolvimento e
ajuda humanitária em França. E trabalhou na Delegação Católica para a
Cooperação (França), na Agência Católica para o Desenvolvimento no
Exterior (Reino Unido) e na Cooperação Internacional no Ministério da
Saúde (Portugal).
Não haverá na Europa melhor sítio para trabalhar
do que o Reino Unido. “Há muita massa crítica, muito cruzamento entre
mundo académico, organizações não-governamentais, sector público”,
esclarece. Só que era em Portugal, onde o sector é mínimo e quase todo
virado para o mundo lusófono, que ela e o marido queriam ver crescer os
dois filhos. Queriam que tivessem avós, tios, primos.
Não tardou a
regressar a uma organização católica. “Tenho um perfil de sociedade
civil”, diz. Recebeu um convite para a FEC, para projectos nas áreas da
educação, da saúde e da capacitação institucional. “Na sociedade civil
há mais liberdade — não de meios, mas de fazer coisas.”
A ONGD
conta com 15 pessoas em Lisboa e outras 50 em Bissau, onde, “pela
instabilidade política e a dificuldade em encontrar organizações
sólidas”, faz muito trabalho directo. Em Angola têm só um representante.
Em Moçambique, outro. E Susana Réfega não está confinada ao escritório,
embora saia muitíssimo menos do que antes de se ter tornado mãe. “Todos
os anos tenho feito pelo menos uma missão”, assegura. Precisa disso.
Gostava que o Ano Europeu do Desenvolvimento servisse para se perceber o
que isso é. “Estamos todos neste planeta. Precisamos uns dos outros.”
João Martins, Director executivo ADRA, 39 anos
Aterrou
em Luanda a 27 de Março de 2009. Devia seguir para Malanje, mas a
cidade foi cercada por elementos da União Nacional para a Independência
Total de Angola (UNITA). Teve de esperar três meses. Pôs-se a trabalhar
nos campos de refugiados, onde a Associação Adventista para o
Desenvolvimento, Recursos e Assistência (ADRA) fazia distribuição
alimentar e educação infantil. Embarcou no primeiro voo humanitário.
“Encontrámos uma situação indescritível. Tínhamos um raio de 20
quilómetros para nos movimentarmos. De resto, havia perigo de
bombardeamentos desde que o sol se punha até que nascia. Vi crianças,
mulheres, homens a morrer de fome. Uma cidade de 70 mil pessoas tinha
mais 300 mil vindas de outras partes.”
Foi uma estreia dura aquela
a que João Martins teve direito. Sentia que só havia duas hipóteses:
reagir e socorrer quem tanto precisava ou horrorizar-se e fugir. Reagiu.
Outros fizeram o mesmo. Aliaram equipas da ONU e de várias ONGD.
“Montámos um programa. Cada um ficou com um plano de acção. A ADRA ficou
com um projecto na área da saúde e outro na área da nutrição infantil.”
Para
lá do horror da guerra, chocava-o a “hipocrisia”. Não era só o violento
confronto entre a UNITA e o Movimento Popular de Libertação de Angola
(MPLA). Havia ali uma forte intervenção estrangeira. Angola foi uma
espécie de palco da Guerra Fria e teve impacte no Congo e na Namíbia.
“Era tudo uma questão de interesses”, diz. “As pessoas morriam de fome
ou bombardeadas porque havia outros estados que estavam a tirar de lá
recursos, petróleo ou diamantes, ao desbarato. Portugal vendia fardas,
mas a África do Sul, os Estados Unidos, a Rússia…”
Tudo aquilo mexia com as suas entranhas. “Via passar grandes tanques,
que destruíam estradas”, conduzidos por estrangeiros, e perguntava-se
se estar ali, ainda que a prestar ajuda humanitária, de certo modo não
era compactuar com tudo aquilo. Ao regressar a Portugal, afastou-se
daquele universo.
Licenciado em Gestão de Empresas, João Martins
começou a trabalhar numa multinacional de uma área em expansão, a
informática. Tinha um bom salário e, ao mesmo tempo, um grande vazio.
“Não me motivava saber que estava a contribuir para uns accionistas
ganharem muito dinheiro. Achei que era interessante desenvolver a minha
formação na área da cooperação para o desenvolvimento. Fui para
Inglaterra fazer Mestrado em Estudos de Desenvolvimento Aplicados.”
Valorizaram-no
no retorno. “Fui contactado por várias ONGD. Fui para São Tomé, para o
Iraque… Entretanto, a ADRA falou comigo. Primeiro, fiquei responsável
pela parte financeira e pelos projectos internacionais. Depois, fui
convidado para assumir a direcção”, recorda. Foi há quase dez anos. João
Martins tinha 30.
Era “um grande desafio”. A ADRA existe em 125
países. Atendendo a tal critério, é uma das maiores ONGD do planeta.
Poder-se-á pensar que isto facilita o acesso aos fundos internacionais,
mas não. Ainda que trabalhem em rede, mantêm independência. “Os
conselhos de administração são nacionais. Cada ADRA está registada no
seu país como ONGD nacional.”
Unem-se para responder a desastres
naturais ou crises humanitárias ou para montar projectos de
desenvolvimento comunitário. O vírus do Ébola na África Ocidental, por
exemplo, está a ocupar diversas equipas. Uns distribuem alimentos a
pessoas de quarentena, na Libéria. Na Serra Leoa, outros desenvolvem um
programa de descontaminação para prevenir o avanço do vírus.
Entre
as iniciativas portuguesas, nada parece gerar mais orgulho a João
Martins do que o projecto das bibliotecas escolares em São Tomé e
Príncipe. Numa primeira etapa, a ADRA-Portugal divulgou a iniciativa,
recolheu livros infantis e didácticos e outro material escolar. Numa
segunda, São Tomé fez a distribuição pelas escolas.
Ainda há pouco
lá esteve. Aprofundaram a intervenção com crianças do ensino primário
das escolas de Vila José e Ribeira Funda — tratam de distribuir
uniformes aos alunos, de lhes providenciar duas refeições diárias, de
apoiar as suas actividades. Mas não lhe falta trabalho por cá. Com a
crise a galgar, a ADRA, como outras ONGD, decidiu agir em Portugal.
“Começamos com apoio alimentar a famílias carenciadas, mas temos
progredido e já temos projectos de formação, de capacitação.”
João Rabaça, Director comercial da CESO, 39 anos
Critica
“o voluntarismo do ‘vamos construir poços em África’”, critica “o
voluntarismo do ‘vamos dar água às pessoas’”, critica “o voluntarismo do
‘não vamos pensar muito na manutenção’”. A João Rabaça, vem-lhe à
memória São Tomé e Príncipe e os seus inúmeros fontanários abandonados. É
um princípio. “Não basta construir uma escola, pintá-la, dizer: está
feito. É preciso pensar: É sustentável? Consegue perdurar? Como se
pagarão os professores e a alimentação das crianças? Vamos recorrer à
ajuda internacional? Pode ser, mas, como modelo de longo prazo, não
funciona.”
Que não haja equívocos. Não nega a importância das
acções de emergência. Aprendeu que cooperação para o desenvolvimento é
outra coisa. “Não acredito na bondade pela bondade, na doação pela
doação. Uma coisa é o cidadão comum fazer uma doação e outra coisa é
quem tem obrigação de a transformar limitar-se a transferi-la. Nisso não
acredito. Nisso nunca acreditei.”
Veio de outro mundo.
Licenciou-se em Biologia. “Queria mergulhar.” E mergulhou, mergulhou
logo. Foi investigador de ecologia marinha, em Sines. Mas não, não era
aquilo. “Na Biologia faltavam pessoas.” Não se livrou de um elemento.
“Acabei quase sempre por cair dentro de água.”
“Há um magnetismo”,
confessa. “Não consigo aceitar que em 2015 haja pessoas que não têm
acesso a água e a saneamento. Temos carros, telemóveis, aviões, todo um
sistema mundial de produção, e há pessoas sem água? É tão elementar que é
irreal. Tem sido esse o enfoque do meu trabalho.”
Vem-lhe à
cabeça uma imagem que captou no Cazenga, um bairro da periferia de
Luanda. “Era a altura das chuvas. Numa avenida larga, um camião com lixo
a sair. É uma metáfora. Todo aquele lixo no meio da água. A água é
importante e as pessoas não têm água, a água está com o lixo.”
Frequentava a Universidade de Évora quando se interessou por algo que
não conseguia ainda identificar, que só mais tarde percebeu ser
“cooperação para o desenvolvimento”. Participou num projecto na área
científica, com o Museu de História Natural de Maputo. “Ficou-me esta
coisa...” Mas o que fazer com ela? Em Portugal, o sector permanecia “um
submundo”. Como entrar?
Testou as suas capacidades na comunicação de ciência (trabalhou no jornal Água e Ambiente),
só que “a coisa” continuava dentro dele, a remoer. “Há uma dimensão
política. Não no sentido da política partidária, no de compromisso que
cada um pode assumir enquanto cidadão do mundo. O mundo não é só Lisboa,
Portugal, Europa. Esquecemo-nos muitas vezes que a responsabilidade de
cada um vai para além de nós enquanto cidadãos de uma cidade, de um
país, de um continente.”
Decidiu voltar a estudar. Fez as malas e
rumou a Inglaterra para frequentar um mestrado que lhe permitia
relacionar recursos naturais e pobreza, agricultura e desenvolvimento
rural. As portas abriram-se. Empregou-se na Alemanha, na ICELI — Local
Governments for Sustainability, uma rede de municípios com escritórios
em diversas partes do mundo. Entusiasmou-se com um projecto de
cooperação destinado a promover a participação de governos locais na
gestão de recursos hídricos — Moçambique, Zimbabwe, Botswana e África do
Sul. Viajou várias vezes, sem meter as mãos na massa. “Era um projecto
de investigação para desenvolver ferramentas de trabalho.” Só passou à
acção directa quando voltou a Portugal e começou a trabalhar na
TESE-Associação para o Desenvolvimento.
Marcou-o Bafatá, na
Guiné-Bissau. “Foi um dos primeiros projectos com uma certa dimensão que
a TESE teve”, conta. “Numa cidade de cerca de 30 mil habitantes, as
pessoas abasteciam-se no rio, numas fontes em mau estado. Hoje, há um
centro de distribuição e a água é paga. A água é um serviço, deve ter um
pagamento, o que não quer dizer que toda a gente deve pagar ou pagar o
mesmo.”
Há todo um debate sobre ONGD. João Rabaça não quer ir por
aí: “Há gente mais pragmática, menos pragmática, mais comprometida,
menos comprometida em todo o lado. O que não há, se calhar, é gente tão
comprometida e situações tão sem sentido como esta de haver tanta gente
sem acesso a água.”
Já não trabalha numa ONGD. Mudou-se para uma
empresa de consultadoria, a CESO — Development Consultants, com sede em
Lisboa. Acredita “em transferir serviços ou capacidade de prestar
serviços” e, de certo modo, é isso que continua a fazer. “Ajudamos a
desenvolver ferramentas, competências técnicas, estudos que permitem aos
estados reforçar a actuação e com isso promover o desenvolvimento.”
Também ajudam a gerir a ajuda ao desenvolvimento, essa transferência de
verba que “decorre de uma responsabilidade global que temos enquanto
pessoas”.
Mónica Frechaut, Mediadora cultura do CPR, 36 anos
Quando
vai às escolas, os mais pequenos perguntam-lhe por que fogem as
pessoas. Mónica Frechaut fá-los pensar em variáveis como etnia,
nacionalidade, religião. “Se existem tantos refugiados no mundo, por que
Portugal tem tão poucos?” Ela mostra-lhes o mapa, fala na distância a
que o país está dos principais conflitos. “Ficam um bocado surpreendidos
quando digo que alguns apanham um avião. Têm ideia de que os refugiados
vêm todos de barco, não têm condições económicas, vêm de países
africanos. Desconstruímos essa ideia. Dizemos que o refugiado pode ser
qualquer um. No fundo, nunca sabemos quando é que podemos ser
perseguidos, quando é que o Estado deixa de nos proteger, quando temos
de procurar um lugar seguro.”
Cresceu no Bairro da Bela Vista, em
Setúbal. Conviveu com o preconceito, a discriminação. Viu efeitos disso
tudo nas relações entre pares, nas repartições públicas, no acesso ao
mercado de trabalho. Ainda estudante de Psicologia, entrou no movimento
anti-racista. Na hora de fazer a tese, quis estudar o racismo. “Como é
que uma pessoa é racista?”, perguntava-se. “Tem que ver com esquemas
mentais, com a forma como formamos impressões sobre outras pessoas. E
tem que ver com experiência pessoal. Muitas vezes, não têm conhecimento,
não olham para os outros como indivíduos mas como membros de grupos.
Têm ideias preconcebidas, fazem generalizações.”
Ainda fez
investigação no ISCTE — Instituto Universitário de Lisboa, dois anos
antes de Teresa Tito Morais a convidar para o Conselho Português dos
Refugiados (CPR), uma ONGD fundada em 1991 com dois trabalhadores,
alguns voluntários e o patrocínio da Agência da ONU para os Refugiados —
ACNUR.
Tinha andado a estudar migrações. Tinha-se debruçado,
ainda que pouco, sobre a problemática das mulheres refugiadas. “Já
conhecia os desafios. Já conhecia as diferenças brutais que existem
entre imigrante e refugiado, entre deixar um país de forma voluntária e
deixar um país porque se é obrigado, porque não garante a segurança, o
respeito pelos direitos humanos.”
Pode não ser óbvio, mas existem
pontes entre migração forçada e desenvolvimento. Desde logo, “o ‘mau
desenvolvimento’ é gerador de refugiados”. Há sempre gente a fugir
“quando não há processos democráticos, quando falta liberdade, quando
falta respeito pelos direitos fundamentais”.
Um afluxo pode gerar
tensão na região. Na sequência do conflito que se arrasta há cinco anos,
620 mil sírios refugiam-se na Jordânia, por exemplo. Ainda há pouco, o
alto-comissário da ONU para os Refugiados, António Guterres, disse que
tal suscita uma “pressão dramática na economia e na sociedade do país”.
“É
um exercício de solidariedade, de partilha de responsabilidades”,
salienta Mónica Frechaut. “Faz sentido que os países europeus se possam
comprometer mais na reinstalação de refugiados”, prossegue. É uma
solução prevista pelo ACNUR, quando não é possível o retorno voluntário
ao país de origem nem a integração no país de acolhimento. Há uma quota
por país. Portugal comprometeu-se a receber até 30 por ano. No ano
passado, ficou-se pelos 14. No ano anterior, pelos 29.
Os números
são sempre baixos em Portugal. No ano passado, houve 442 pedidos de
protecção internacional nos postos de fronteira ou no território
nacional: 279 foram admitidos — 19 com estatuto de refugiado (Irão,
Arménia, Marrocos, Rússia, Quénia) e 89 com autorizações de residência
por razões humanitárias (Ucrânia, Paquistão, Guiné-Conacri, Eritreia).
“É
importante dar ferramentas ao nível da educação, dar formação a estas
pessoas”, diz. “Um dia, podem querer voltar aos seus países de origem e
podem ajudar a reconstruí-lo, podem ser centrais no seu desenvolvimento.
Tudo o que Portugal lhes oferecer está a oferecer ao desenvolvimento.”
Até
pelo número diminuto, pouco se sabe sobre refugiados. “Cabe-nos tentar
que a população esteja mais esclarecida”, refere. Dedica-se à informação
pública. Auxilia jornalistas. Faz sessões nas escolas. E, de certa
forma, é como se voltasse ao princípio. “A questão da discriminação é um
problema e é transversal. Tentamos sensibilizar os mais jovens para os
problemas dos refugiados em particular. As crianças e os jovens
interessam-se e isso é importante para se criar uma cultura de
respeito.”
Fonte: Público