Cinzia D’Auria,
antropóloga italiana, é uma frequentadora da África e da sua cultura,
sobre a qual procura lançar um olhar diferente daquela a que a
Antropologia clássica nos habituou: a de ver as culturas dos outros como
simples objectos de estudo. É com esse olhar diferente, isto é, com uma
atitude interactiva em relação às culturas africanas que tem vindo a
colaborar com Filomeno Lopes em projectos de educação para uma visão
crítica das realidades sócio-culturais. E isto através de imagens e
música, unidas em documentários audio-visuais. Um projecto que já a
levou várias vezes à Guiné-Bissau, País pelo qual bate o seu coração -
disse na rubrica "África.Vozes Femininas"
Há
vários anos que, eu Dulce Araújo, me cruzo com a Cinzia D’Auria na
nossa Redacção. Ela saúda sempre com um sorriso e um ar muito tranquilo.
Senta-se e espera um momentinho para falar com o Filomeno acerca dos
projectos que levam avante conjuntamente.
Então, para além de ter já visto
alguns documentários por ela realizados, lembrei-me de a convidar a
falar da sua visão da África neste espaço dominical sobre as mulheres.
Ela preferiu falar em italiano, pois que não se sente ainda muito à
vontade no português ou mesmo no crioulo que, no entanto, compreende um
pouco.
Cínzia começou por nos dizer que é formada em Ciências Sociais com
orientação antropológica e que sempre sentiu o desejo de estudar outras
culturas e de romper com essa série de estereótipos sobre a África,
sobretudo, que é muitas vezes apresentada como uma África indigente,
incapaz de resolver os seus problemas sózinha. Algo que sempre a
perturbou imenso:
“Essa visão sempre me perturbou de algum modo, porque não conseguia
aceitar que um Continente tão rico em termos de identidade e de
tradições fosse representado de forma tão negativa no imaginário
ocidental, europeu. Daí nasceu, portanto, uma sede de justiça social no
sentido de querer dar uma visão da África diferente daquela que tinha
recebido dos estudos antropológicos; África e não só, porque os meus
estudos eram ligados a povos indígenas, todos aqueles povos que eram
sempre considerados à margem da história europeia e ocidental”.
Terminados os estudos, Cínzia passou a usar a câmara de filmar e a
máquina fotográfica para procurar transmitir uma visão diferente da
África. Foi assim que realizou um documentário sobre a religião Vudu,
típica de alguns países africanos, como o Benin, o Togo, e foi
apresentando esse filme num Festival que conheceu o Filomeno Lopes:
“O encontro com o Filomeno aconteceu num festival de cinema em que
tinham seleccionado um documentário que eu tinha realizado sobre a
África (Togo e Benin) através do qual tinha procurado dar uma visão
diferente da África em relação ao Vudu, religião tradicional”
Já fazias, portanto, documentários como forma de expressão?!
“Sim, sim, digamos que o meu endereço de estudos foi Antropologia da
Comunicação Visual e sempre utilizei a imagem, o documentário para
interpretar as outras culturas porque a imagem é uma forma de
comunicação muito mais directa e imediata”
Uma sintonia de ideias e abordagens da cultura africana entre a
Cínzia e o Filomeno que acabou por dar vida a uma relação de trabalho
criativo. Ele com a música, ela com o documentário fílmico. Uma união de
dois instrumentos pedagógicos num só, para formar, estimular as pessoas
a reflectir criticamente, um instrumento que Cínzia considera mais
adequado porque toca o âmago das pessoas e apazigua mesmo as formas de
conflitualidade que podem assim ser colocadas com normalidade em forma
de debates.
“A partir disso assumimos juntos esse desafio realizando, por um
lado, uma série de documentários que enfrentam temáticas diferentes,
entre os quais documentário sobre a liderança: que liderança para a
África de hoje?, e outros sobre a importância da memória histórica para
a África (e não só) para se poder empreender o caminho em direcção ao
Renascimento africano. E com a realização desses documentários
empreendemos uma espécie de caminho, mesmo na Guiné-Bissau, caminho que
nos levou a diversos lugares da memória histórica da Guiné-Bissau, entre
os quais Cassaká, Ponte Balana, Cacheu, etc.
Projectamos o documentário, fizemos um concerto e, depois houve
debate com as pessoas localmente. E devo dizer que isto deu lugar a
momentos de grande entusiasmo, de grande interesse porque constatamos
que realmente o método que estamos a adoptar e que, na realidade, é um
método experimental, tinha suscitado muito interesse e todos
participaram activamente e de algum modo tinha-se criado um diálogo, um
pouco à maneira tradicional da África, do Djemberém, e todos eram
levados a procurar resolver as situações conflituais para empreender um
caminho em direcção a um futuro de paz e reconciliação”
Esta colaboração com o Filomeno já levou a Cínzia várias vezes à
Guiné-Bissau e desde o início teve uma impressão positiva do país:
“A impressão na Guiné-Bissau foi inicialmente muito forte. O que
mais me tocou foi a relação com as pessoas, no sentido de que estavam
muito motivadas. E o que notava é que deviam ser, de algum modo,
estimuladas. Era necessário um desafio cultural que pudesse dar a
possibilidade de fazer emergir as potencialidades que parecem estar
adormecidas. Mas havia uma grande força, uma grande vontade de mudança
e, por isso, achei que é preciso dar instrumentos que orientem essas
mudanças em direcção ao Renascimento africano. Mesmo na Universidade
"Colinas do Boé", onde projectamos os documentários, os estudantes
participaram activamente e faziam muitas perguntas que serviam a eles
próprios para um crescimento interior e para compreender melhor seja o
próprio país seja a relação com outros países”.
Cínzia já visitou vários países da África: Benin, Togo, Mali,
Etiópia, e através da Associação italiana Zoé, de que é membro, faz
outros trabalhos sobre os países do Sul do mundo, mas o seu coração está
mais virado para a Guiné-Bissau…
“Na realidade o meu coração está com a Guiné-Bissau porque se trata
de um projecto, a meu ver, muito importante no sentido de que trabalha
sobre a cultura, a formação e são na minha opinião os projectos mais
difíceis porque requerem muito tempo antes que se chegue a uma solução; é
uma procura continua”.
Como foi a passagem dos livros para a realidade?
“Digamos que os textos da Universidade inicialmente eram sobre a
Antropologia clássica que me deixava muito perplexa porque davam noções
ligadas à tradição colonial; então procurei seguir caminhos que na gíria
são identificados como a nova antropologia cultural que procura dar uma
visão completamente diferente não só da África, mas também doutros
países; enquanto que a Antropologia clássica tendia a considerar as
culturas como objecto de estudo; eu não conseguia aceitar isso porque
objecto significa coisificar o que estás a estudar, quando na realidade
o que acontece é uma troca contínua de emoções e sentimentos. Daí esse
reinventar a Antropologia, estas novas vias, segundo as quais o
antropólogo não deve estudar o objecto, mas deve interpretar através
duma comunicação dialógica com as outras culturas. Disso nasceu,
portanto a necessidade de adoptar uma metodologia diferente e de ter uma
definição diferente do conceito de identidade que não seja algo fixo,
imutável, como faz crer a Antropologia clássica, mas algo constantemente
em mutação e transformação. Daí uma concepção diferente também da
História, quer dizer a própria África era considera um continente sem
história e nisto a filosofia de Hegel teve uma notável influência.
Portanto, procurei aplicar essas novas teorias da Antropologia à
realidade concreta da Guiné-Bissau. E é verdade que a África, a própria
Guiné-Bissau, é um cruzamento de culturas e identidades, e não se pode
pensar numa identidade fixa, imutável e pretender preservá-la como tal.
Isto seria um fechamento que levaria a uma negação da própria cultura.
O
projecto empreendido com o Filomeno é, no fundo, uma demonstração
prática, no terreno, destas novas vias da Antropologia, vias que me
levaram a fazer uso de instrumentos como a câmara de filmar ou a máquina
fotográfica para poder entrar em contacto com outras culturas e fazer
referência àqueles elementos da pessoa que são a emoção… e que na
Antropologia clássica eram eliminadas porque – dizia-se – podiam
falsificar a objectividades da cultura… Mas estes elementos entram todos
em jogo e dão a possibilidade poder acolher aqueles elementos mais
profundos de uma cultura para a poder compreender na sua profundidade”.
E a Antropologia como ciência mudou neste sentido que está a dizer ou
antropólogos como tu que vão nesta linha são de algum modo marginais?
“Digamos que infelizmente, na Itália, a Antropologia é ainda de tipo
tradicional. É difícil encontrar pessoas ou professores que tendem a
seguir um novo caminho. Com efeito, esta nova linha é de antropólogos
como Cliford, Marcus… que são antropólogos dos Estados Unidos. Por
conseguinte, diria que, por um lado, (e é uma crítica que faço à
Universidade) é mais fácil permanecer ancorados nos velhos conhecimentos
do que elaborar novos que, no entanto, levam a uma maior abertura em
relação aos outros povos e podem até ajudar na identificação de
possíveis soluções para aquilo que é o problema das migrações que temos
vindo a enfrentar nos últimos anos. Isto para dizer que algumas pessoas
conseguem seguir aquilo que é a nova antropologia, mas a tendência,
infelizmente, na minha opinião, é a de seguir a antropologia clássica. É
um trabalho mais pessoal, isso de abrir novos caminhos que, de forma
experimental, dêem a possibilidade de ter uma leitura diferente daquele
que é a realidade actual”.
Com o Filomeno colaboras há cerca de 10 anos nestes projectos de educação na Guiné-Bissau. Já se vêem resultados?
“Digamos que o trabalho é longo. Sim, nota-se uma maior
disponibilidade e muitas vezes nos pedem para ir realizar esses
encontros de reflexão. Devo dizer que desde a primeira vez que estive na
Guiné-Bissau tenho notado mudanças positivas em termos de
disponibilidade tanto das pessoas como de instituições… Tudo isso tendo
em conta que no arco de 10 anos houve diversos golpes de Estado, de modo
que da última vez que estivem lá, em 2013 vi ainda muito mais
disponibilidade das pessoas à mudança e isto encheu-me de alegria, pois
quer dizer que as coisas estão a mudar realmente e que há vontade
interna de mudar, de chegar a uma cultura de paz, de reconciliação no
país. Devagar, devagar grandes passos estão, portanto, a ser dados. E
nós procuramos no nosso pequeno continuar com esses encontros para
estimular as pessoas a reflectir e a desenvolver o sentido crítico em
relação às problemáticas do país…
“Através do documentário são tratados temas como a liderança. Ao
mesmo tempo, mesmo na canção há uma série de palavras que se referem à
liderança ou à história da Guiné-Bissau. Daí se desenvolve depois o
debate e nascem perguntas, as pessoas se interrogam sobre porque é que
aquilo que foram os princípios, os valores, por ex. de um líder como A.
Cabral não encontram lugar na sociedade actual, em que é que se errou, o
que se pode fazer….Por isso, diria que é um debate muito construtivo,
sobretudo porque ajuda as pessoas a mudar o modo de pensar, mas em
sentido crítico, a interrogar sobre si mesmos e sobre os outros: o que
se pode fazer para melhorar a própria situação e a do país. O que notei é
que tem um impacto muito directo, um simples debate académico não
consegue talvez atrair muito a atenção das pessoas, sobretudo dos
jovens.”
Cínzia, estamos na rubrica “África.Vozes Femininas”. Em todas essas
suas viagens à África, que visão tens vindo a construir da mulher em
África?
“Olha…, dou-te somente este exemplo que me tocou muito: ao longo
deste percurso que temos vindo a fazer sobre a memória histórica, fomos a
Madina do Boé, o lugar onde foi proclamado a independência da
Guiné-Bissau e ali encontramos uma senhora, uma ex-combatente que nos
acompanhou ao lugar onde havia um primeiro destacamento de Amílcar
Cabral. Essa mulher tocou-me muito porque estava profundamente
emocionada e disse: “vocês vieram até aqui para valorizar a memória de
Amílcar Cabral”. E enquanto dizia essas palavras chorava, e continuava a
falar dizendo: “estais a ver o estado em que está o nosso país? Não era
isto que Amílcar Cabral queria!”. Isto comoveu-me também a mim, porque
pensei: olha esta mulher que combateu para a independência e está hoje
num país que não corresponde àquilo que era o ideal de Amílcar Cabral…
que participação, que sentimento, que força ela tem dentro de si… Então,
a meu ver, a figura da mulher representada por essa senhora é uma
figura muito forte, uma figura de mulheres que fizeram parte do processo
de mudanças do país, e não são mulheres marginais que estão à margem do
processo de mudança do país. Esta, digamos, foi a minha experiência, um
envolvimento que não vi noutros países onde estive e onde as mulheres
me pareciam mais relegados à…. Bem, talvez tenha sido influência de
Amílcar Cabral que envolvia as mulheres no processo de mudança do país”
(DA)