terça-feira, 1 de março de 2016

DULCE NEVES EXIGE RECONHECIMENTO DO ESTADO COMO " COMBATENTE DA PROMOÇÃO CULTURAL".

A Embaixadora da música moderna da Guiné-Bissau, Dulce Neves, exige que o Estado guineense a reconheça como “combatente” da promoção da cultura nacional no mundo. A cantora tornou público o seu desejo durante uma entrevista à rubrica “Grande Entrevista” do semanário “O Democrata”, na qual disse ainda que merece ser tratada como Cabo Verde tratava Cesária Évora.
Lembrou ainda que na época em que começou a cantar tal não era fácil, sobretudo para uma mulher, devido ao preconceito que pairava nas cabeças das pessoas.
“Não era fácil ver uma mulher cantar na sociedade guineense naquela altura, ela era logo apelidada de todos os tipos de nomes (menos dignos). Na época éramos muitas meninas na música, tínhamos Assinatu Bari, Celeste Pires, Diana, Cadi Indjai e Mena (esposa do Atchutchi), mas infelizmente, apenas eu consegui aguentar a corrida até aqui. E as outras ficaram pelo caminho”, contou.
O DEMOCRATA (OD): São 40 anos de carreira musical. De forma sintética, explique-nos como entrou no mundo da música?
DULCE NEVES (DN): Comecei no mundo de arte e cultura em geral, quando tinha quinze anos. Iniciei num grupo teatral que se chamava ‘Afro Cid’ que pertencia a uma senhora brasileira de nome Teresa Santos. Na altura, José Carlos Schwartz e Adriano Ferreira (Atchutchi) iam sempre dar apoios à Teresa Santos nos trabalhos do grupo. Foi lá que Atchutchi me viu e convidou-me para integrar a Orquestra “Super Mama Djombo”.
Fui para “Mama Djombo” em 1976, onde comecei como um elemento da orquestra e cantava às vezes como vocalista principal em alguns temas musicais, e fazia também coros noutros temas.
OD: Já conta com quatro álbuns a solo. Quais são os nomes desses discos e qual deles a projectou mais a nível interno e internacionalmente no campo da música?
DN: Gravei quatro álbuns a solo, mas já tinha gravado muitas músicas com a Orquestra “Super Mama Djombo”, algumas inéditas até então. Como carreira a solo, tenho já quatro discos no mercado. O primeiro foi intitulado ‘Nha Distinu’ gravado em 1997 com o apoio de Santy da Rádio Pindjiguiti e sua esposa Marisa. A partir daí ‘Nha Distinu’ – (Meu Destino) passou a ser meu cartão-de-visita e ajudou-me bastante, porque quando se tem um disco, ele corre por quase todo canto do mundo.
Continuei a fazer a minha carreira a solo, porque nos anos 80 alguns elementos de “Mama Djombo” foram para o estrangeiro em busca de uma vida melhor e outros para estudar na Europa. Nesta senda da minha carreira, surgiu o meu segundo álbum ‘Balur di Mindjer’ – (Valor da Mulher), o terceiro foi ‘Mundu Rabida’ – (o Mundo Mudou) e este último disco e quarto é ‘Udjus di Mininus’ – (Olhos de Meninos) editado em 2015.
OD: Como foram os trabalhos de gravação do seu primeiro álbum ‘Nha Distinu’?
DN: Não é fácil gravar um disco no nosso mercado, porque batemos várias portas e ninguém as abre para nós. Em outros países é o Estado e os empresários que investem na área cultural, mas aqui na Guiné-Bissau nem o Estado quanto mais os empresários investem na cultura. Pontualmente se encontras alguém disponível para patrocinar um álbum, como aconteceu comigo no disco da minha estreia – ‘Nha Distinu’, quando Santiy e Marisa abriram as mãos e apostaram no meu projeto. Ariscaram o investimento, mas no final conseguiram recuperar o valor investido no álbum.
OD: Como foram os seus primeiros passos no mundo da música, num país como a Guiné-Bissau onde reina o preconceito sobre a mulher que canta naquela altura?
DN: Não foi fácil ver uma mulher cantar na sociedade guineense naquela altura, era apelidada de todos os tipos de nomes (menos dignos). Na época éramos muitas meninas na música, tínhamos Assinatu Bari, Celeste Pires, Diana, Cadi Indjai e Mena (esposa de Atchutchi), mas infelizmente, apenas eu é que consegui aguentar a corrida até aqui. E as outras ficaram pelo caminho.
OD: Qual foi o segredo da sua resistência para superar as dificuldades e preconceitos, afirmando-se como cantora na Guiné-Bissau?
DN: Acho que foi destino que Deus colocou na minha vida, por isso cheguei até aqui, mas na verdade, passei grandes dificuldades. Ser cantora na Guiné-Bissau e enfrentar os homens na cultura para chegar onde estou hoje, não é nada fácil. Ainda hoje tenho dificuldades. Imagina quando comecei a cantar. No período que ingressamos no mundo da música (eu e as colegas que não prosseguiram nesse caminho), as mulheres que cantavam eram vistas como ‘bandidas’ aos olhos da sociedade. A meu ver talvez seja um dos fatores que obrigou as outras meninas a deixarem de cantar, tendo em conta que acabaram por casar. Provavelmente os maridos não as deixaram participar nas atividades musicais.
OD: Fez parte da Orquestra Nacional “Super Mama Djombo”. Mama Djombo foi determinante na sua carreia musical?
DN: Sim, foi muito determinante na minha carreira, porque ali encontrei as pessoas que me deram as mãos logo nos meus primeiros momentos de música e ajudaram-me a entrar nesse mundo de arte onde estou hoje. Ainda bem que encontrei uma Orquestra como “Mama Djombo” onde estavam pessoas com grande experiência e visão da cultura, como Atchutchi, Zé Manel, Tchico Caruca e o resto dos elementos, onde sempre fui tratada com carinho e amor por todos. Eu era como uma irmãzinha de todos os membros do grupo”.
OD: Ainda está ligado ao grupo?
DN: Estou e não estou… porque seria difícil ocupar duas tarefas, as do grupo e a solo. Mas quando há um trabalho pontual de Mama Djombo, dou sempre a minha contribuição, por exemplo, na gravação do último álbum da Orquestra intitulado de “Ar Puro”, viajei com o grupo e estivemos um mês na Islândia para gravar o disco.
Desliguei-me mais por causa do meu trabalho musical a solo. Às vezes os calendários da Orquestra coincidem com a minha agenda individual, facto que muitas vezes impediu-me de participar em alguns concertos de Mama Djombo, principalmente nos concertos no estrangeiro, mas aqui no país, se estiver livre, participo sempre, dando a minha contribuição.
OD: Intitulou o seu último álbum de “Udjus di Mininus”, por quê desse título?
DN: “Udjus di Mininus” – (Olhos de Meninos) é mais ou menos para chamar atenção à sociedade guineense e ao Estado da Guiné-Bissau. Claro que quando falamos do Estado temos todo um conjunto de componentes dentro do próprio Estado. Falar do Estado fala-se das leis da República da Guiné-Bissau.
Sabemos e vimos o que está a passar com a nossa juventude, com os nossos filhos. Falo como uma mãe e não como cantora. Vemos àquilo que está a acontecer com os nossos filhos, quando concluem o liceu, não há bolsas de estudos para os nossos pobres jovens poderem formar-se. E vemos como as mães se sacrificam, também vemos o que há na Guiné-Bissau. Vemos o comportamento dos homens com as nossas meninas, só por terem o poder económico andam a praticar pedofilia com as nossas filhas.
OD: Como pioneira da música moderna guineense, como vê as cantoras que estão a seguir atualmente a estrada construída pela Dulce Neves?
DN: Acho que estão num bom caminho. Temos meninas que estão a cantar muito bem, mas apenas o fator apoio constitui um obstáculo para elas neste percurso. As jovens não têm apoios para cantarem, as vezes pedem-me apoio, mas a Mana Dulce também não tem a possibilidade de as ajudar. Porque até hoje não recebi apoio de ninguém.
Quero dizer às cantoras nacionais que tenham coragem e que um dia, Deus iluminará seus caminhos. E aconselho-as para terem força e coragem, porque essa nossa área não é nada fácil. Só quero aconselhá-las também para que estudem. Mesmo cantando, que estudem. E que se esforcem para se formarem a fim de conquistarem os seus futuros, porque a cultura na Guiné-Bissau não faz e não dá nada para os músicos.
Quando comecei a cantar, a minha mãe não tinha condições de me pagar uma formação, por isso não consegui formar-me. Na altura, eu vendia mancara e mandioca, também lavava e passava a ferro as roupas dos comerciantes mauritânianos, tudo para chegar onde estou hoje. Ou seja, tínhamos que fazer isso para poder estudar, porque as nossas mães não tinham meios para nos custear a universidade ou enviar-nos para estudar no estrangeiro.
Agora o mundo é outro, as meninas estão a cantar muito bem e podem continuar a fazer música, mas elegendo sempre a formação em primeiro plano, porque este caminho musical não é nada fácil na Guiné-Bissau. E ainda não é um futuro airoso para nós!
OD: Como avalia a prestação dos músicos da nova geração (rapazes e meninas)?
DN: A nova geração na sua totalidade, tanto rapazes quanto as meninas, todos estão num bom caminho e a cantar muito bem, mas o único problema é a ausência do apoio. Vamos-lhes dar força e continuar a pedir a Deus que ilumine os seus caminhos, porque esta nossa casa da cultura não é nada fácil. Mesmo nós, na época em que começamos a cantar não tínhamos apoios e não tínhamos nada.
Mas quando se fala de apoio, as pessoas pensam logo que se trata de receber dinheiro, mas na realidade não é nada disso. Falamos de condições para a prática da cultura em geral, porque noutras partes do mundo há apoios para área cultural. Por exemplo, vemos os casos da Cesária Évora, Titina e Tito Paris (ambos de Cabo Verde), Youssou N’dour e Coumba Gawlo Seck (ambos do Senegal) e outros cantores dos Países Africanos da Língua Oficial Portuguesa (PALOP).
Vou falar apenas dos PALOP para não mencionar outros países do mundo. Somos combatentes da cultura, por exemplo, se formos ver as condições que os seus Estados lhes oferecem, não tem nada a ver com as nossas aqui, mas fizemos o mesmo percurso. Felizmente todos os colegas dos países africanos lusófonos nos reconheceram pelo valor que temos, infelizmente não estamos a ser reconhecidos dentro do nosso país.
Isto é, se compararmos as condições que os seus Estados lhes oferecem como espelhos dos seus países, quando voltarmos para a nossa Guiné-Bissau, a forma como somos tratados aqui não tem nada de comparável. Mas nos respeitam, porque reconhecem o nosso valor. A prova disso foram as marcas que deixamos nos palcos internacionais por onde passamos, para representar as cores nacionais. Para nós, é uma honra representar a Guiné-Bissau nos eventos internacionais. É um orgulho, porque transportamos o respeito do solo pátrio de Amílcar Cabral, porque somos o espelho da Guiné-Bissau.
Mas aqui no país, vemos os nossos colegas a andarem nas ruas sem nada. Mesmo quando estão doentes, ficam a deambular de um lado para outro, com as receitas medicas nas mãos, batendo as portas sem que ninguém os responda positivamente. É triste, somos defensores e advogados da Guiné-Bissau.
Apenas o milagre de Deus pode virar o rosto para a cultura da Guiné-Bissau. Os políticos do país só precisam da cultura ou dos músicos nas campanhas eleitorais para servirem de chamariz, porque não podem ficar sem artistas nas campanhas. Sem os músicos, as campanhas não seriam a mesma coisa. Porque é que apenas nas campanhas é que a cultura é atribuída uma importância? Até alguns não recebem os direitos do seu contrato com o partido ou candidato, mas tudo isso tem a ver com a pobreza na cultura. Porque se tivessemos condições e se a lei dos direitos de autor estivesse a funcionar, teríamos o mínimo que é nosso, e não estariamos nos palcos dos políticos nas campanhas eleitorais, porque os artistas são apartidários.
Isso tudo tem a ver com a pobreza e os artistas têm necessidades. É normal apoderarem-se de nós e fazer aquilo que lhes apetece. Ainda temos de ir cantar por eles e quando cantamos, tendo em conta a pequena e complicada sociedade guineense, o outro lado leva a mal. Não percebem que nós também temos as nossas necessidades e fomos a procura do nosso pão, e que nem sempre encontramo-lo a cem por cento. Se conseguirmos 25 por cento já é muito.
É preciso fazer um enorme trabalho na cultura da Guiné-Bissau, porque até agora, não podemos ter um ministério da Cultura como Cabo Verde, Senegal e outros países, contamos apenas com uma secretaria de Estado. Isto constitui um dos fatores que nos deixa pequenos perante os nossos colegas, quando saímos para representar a Guiné-Bissau. Somos uma Secretaria de Estado.
Lá fora não dão grande importância quando se trata da Secretaria do Estado e até somos desprezados, mas se for um ministério, somos vistos com outros olhos. Mas se tivessemos um ministro da cultura capaz, ele levaria a nossa cultura além-fronteiras.
OD: O que deve ser feito para a promoção e valorização da cultura guineense, na sua visão?
DN: Primeira coisa que devem fazer é construir um Palácio de Cultura para nós. No Orçamento Geral do Estado, o bolo da cultura serve apenas para pagar os salários dos funcionários da secretária e direção da cultura. Se existir um palácio da cultura, precisamos de um estúdio de gravação, uma loja com equipamentos músicais como havia nos tempos passados, mas agora não temos nada.
Porque, quando se fala da cultura, fala-se da literatura e do jornalismo, porque os jornalistas estão na mesma situação connosco. Não é justo ficarem a dar condições apenas aos políticos e não aos jornalistas e artistas. É complicado. São os artistas e os jornalistas que levam as mensagens para o exterior. Nós é que entramos em muitos problemas. Já assistimos a morte de muitos jornalistas no mundo, tudo em prol da defesa de uma causa justa, lutando para levar as informações ao público. Sem os jornalistas nós não somos nada e o país também não é nada.
As pessoas que pirateam os nossos CDs são indivíduos que têm melhores condições que nós e passam por nós em carros de botão fino na Praça de Bissau. E têm boas casas no Senegal, por que é que não podemos ter também casas semelhantes cá?
Lembro-me uma vez, quando o Camarada Presidente João Bernardo Vieira “Nino” disse-me assim: “camarada Dulce, vamos dar-te o mesmo estatuto que a Cesária Évora recebeu do Estado cabo-verdiano. Tens direito a uma casa, um carro e um salário mensal por parte do Estado da Guiné-Bissau”. O processo até começara a andar, mas depois de acontecer aquilo que aconteceu…nada mais.
O único dirigente que tentou reconhecer a cantora Dulce Neves como combatente da cultura foi o defunto Presidente Koumba Yalá, que tirou um Decreto Presidencial, que me conferiu o título da Embaixadora da Música Moderna Guineense, do qual recebi um Passaporte Diplomatico. Mas agora se o referido passaporte caducar, a sua renovação custar-me-á mais do que trazer um macaco da floresta para casa.
Eu como, uma combatente da cultura, pelo menos devia receber um reconhecimento, a semelhança da Cesária Évora, que em Cabo Verde tem uma pensão vitalícia, hoje os seus filhos recebem seu salário. Este não é um pedido, mas sim um direito que tenho, porque lutei por esta terra. Quer queiramos ou não, ao falarmos da história da Guiné-Bissau, não podemos deixar de mencionar o nome da Dulce Neves, na área da cultura.
OD: Considera-se uma combatente para a promoção da cultura guineense a nível interno e externo?
DN: Mesmo que não me reconheçam como tal… Eu sou a combatente da cultura guineense, porque lutei para a sua promoção a nível interno e externo. O povo guineense reconconhece-me como combatente da cultura e a nova geração de cantores também consideram-me como a combatente e acima de tudo, consideram-me alguém que deu o seu esforço para a promoção da imagem do país pelo mundo fora.
OD: Fala-se muito hoje de “Direito de Autor” e qual deveria ser o papel dos músicos para defender os seus direitos, na sua opinião?
DN: Infelizmente os músicos não podem fazer nada, se o Estado não tomar medidas necessárias para acabar com a pirataria dos discos, de forma a salvar o “Direito de Autor”. E mesmo se queremos levar a avante alguma iniciativa é impossível, sem um apoio e a determinação do Estado, através das suas estruturas competentes para o efeito.
Se houvesse um Palácio da Cultura no país, estariam alí montadas as estruturas com o apoio do Estado, podia-se criar um gabinete para defender os “Direito de Autor”. A meu ver, esse assunto é da inteira competência do Estado, porque nós artistas, mesmo querendo, não estaríamos em condições para prosseguir.
Lembro que um gabinete de Sociedade de Autores funciona aqui no centro da cidade, onde está o meu irmão Guilherme Sá Filipe. A verdade é que ele também está muito limitado, por isso não consegue fazer nada e, sobretudo, para lutar contra a pirataria de discos ou outras publicações no âmbito da defesa dos direitos de autores. Para sermos coerentes neste assunto, a única entidade com a competência de institucional do “Direito de Autor” na Guiné-Bissau é o Estado e a responsabilidade é dele neste sentido.
OD: O país já leva 43 anos da independência. Da independência a esta parte, será que houve progresso ou retrocesso no sector da cultura…
DN: Nada… Não houve nenhum progresso desde o período da independência e até hoje. Talvez se houver o milagre de “DEUS”, a situação pode mudar amanhã ou depois de manhã. Nenhum governante conseguiu fazer alguma coisa para desenvolver o sector da cultura. Aliás, eles falam de projecto para desenvolver o sector da cultura apenas no período da campanha eleitoral.
Neste período é que se aproximam dos músicos para servi-los durante a campanha. Eu garanto-vos aqui, se não fosse por causa das tremendas dificuldades que os músicos enfrentam, iria sugerir aos meus colegas que no período da campanha eleitoral, que sentassemos nas nossas casas sem tocar para nenhum político, mesmo que tenhamos que morrer de fome…
É chegada a hora de levantarmo-nos para reclamar pelos nossos respeito e valor, porque se não o fizermos, ninguém o fará por nós. Temos que nos unir agora na luta para a defesa do nosso prestígio e dos nossos direitos.
O Estado deve trabalhar na criação de condições para que os músicos possam exercer as suas actividades. Temos de organizar um grande concerto ao vivo com equipamentos de son de grande qualidade, bem como abrir um Estúdio de Gravação. O governo deste país mandou alugar um palco e com os respectivos instrumentos a partir do Senegal. O dinheiro foi parar aos cofres do tesouro público senegalês, portanto para nós isso não é admissível.
Imaginem só. Pagam os materiais alugados ao Senegal, no valor de 15 milhões de FCFA por dia de uso. Os artistas convidados para tocar são pagos ao montante de 50 mil Francos CFA. Isso é muito triste, mas em tudo isso alega que estão a promover a cultura. Será que o Estado da Guiné-Bissau não pode comprar equipamentos como aqueles ou de muito superior qualidade?
OD: O material que está a referir foi alugado pelo Governo da Guiné-Bissau?
DN: Sim foi o Governo… mas para além dele quem mais podia alugar aquele material, não são os artistas e muito menos vocês jornalistas.
OD: Falar da cantora Dulce Neves é como falar de Aicha Koné da Costa de Marfim, Munik Seca, tantas outras vozes da sub-região que marcaram a década 80 e 90. Como é que a Dulce Neves está representada a nível da nossa sub-região, ou seja, a nível internacional?
DN: Sou reconhecida muito bem a nível da nossa sub-região, do nosso continente e a nível mundial. Não foi por o acaso que na comemoração de 39 anos da minha carreira musical a Aicha Koné aceitou o meu convite sem hesitar. Da mesma forma a angolana Patrícia Faria, que naquela altura tinha sofrido um acidente, mas mesmo assim veio até Bissau, e tomaram parte no evento e sem pedir nenhum franco.
Isso demostra aos guineenses o valor e o reconhecimento da Dulce Neves no mundo fora. E Vivian N’Dour viria, mas o evento coincidiu com o lançamento do seu disco, razão pela qual não tomou parte. Ela queria muito vir e a cantora, Yondo Sister que viria também, mas na última hora não conseguiu juntar-se a nós.
Aicha Koné veio tocar comigo, na minha festa de comemoração de 39 anos da carreira musical. Ela terminou a tocar e na madrugada do dia seguinte apanhou o voo de regresso, porque tinha um concerto marcado em Paris (França) para o dia seguinte. Se eu não tivesse valor ou reconhecimento no mundo, as as pessoas não deixariam os seus afazeres para vir até Bissau sem cobrar um único franco.
Eu ergo a bandeira do país para exibir no mundo fora, através das minhas canções. O valor que tenho no mundo fora confesso que não sinto isso no meu próprio país, ou seja, ninguém reconhece Dulce Neves na Guiné-Bissau. A meu ver, devia ser ao contrário. É aqui que as pessoas deveriam reconhecer-nos e valorizar-nos pelos trabalhos que fazemos para a promoção da cultura guineense.
OD: São muita experiência e andanças no mundo da cultura. A senhora tem algum projecto na manga ao curto e médio prazo, na área cultural?
DN: Sim, estou a preparar um projecto. Como se diz no nosso bom crioulo: quem não tem lagrimas, que comece a chorar muito cedo…Quero ainda falar aqui de um projecto muito bonito que tenho em mente, mas infelizmente não tenho ainda condições para o executar.
O projecto é destinado às crianças de rua. Vamos trabalhar para apoiar as crianças guineenses que estão na rua. Estou a falar assim, porque é bom saber que na nossa terra não temos crianças de rua, mas sim as crianças que são postas na rua. Gosto muito de trabalhar com as crianças, por isso nas minhas músicas desenvolvo temas sociais.
Também tenho outra iniciativa de trabalhar exclusivamente com “Mulheres Solteiras”. Tenho esse projecto e já estou a escrever sobre isso. O meu sonho é fazer uma fundação que será denominada de “Fundação Dulce Neves” e com o intuito de trabalhar na defesa e promoção dos direitos das crianças e das mulheres. Espero, que com a ajuda de “DEUS” todo o poderoso, concretizar os meus sonhos o mais rápido possível.
Relativamente ao projecto que tenho a curto prazo, é bom informar que estou a preparar os vídeos deste último álbum “Udjus di Mininus”. Depois da produção do vídeo clips, iniciarei o ‘tour’ pelo mundo fora no âmbito de apresentação e promoção deste novo disco. Já estou a receber solicitações de diferentes partes do mundo através dos nossos emigrantes, nomeadamente os de Boston (Estados Unidos de América), França, Alemanha, Inglaterra, Portugal e Luxemburgo.
Primeiramente estou a pensar fazer um “tournée” a nível do país. Estou a pensar passar por todas as regiões. Não quero que tudo fique apenas aqui no centro, porque sei que Dulce Neves tem os seus fãs a nível de todo o país.
OD: Como a primeira voz feminina que conseguiu erguer-se no mundo da música guineense, acha que há uma voz feminina da nova geração que se identifica com a Dulce Neves e de quem se trata?
DN: Todas elas identificam-se com a Dulce Neves, porque cantam como eu. De todas elas, admiro a forma de estar da MC Lide. Eu vi-a no palco a cantar e uma vez fui ao mercado de Titininha e ela estava sentada junto da mãe e ajudá-la a vender peixe.
Isso é um exemplo muito bonito, portanto isso marcou-me muito. Não é porque se canta é que não se pode vender peixe ou ajudar a mãe. Cantamos uma música no meu novo disco, portanto gosto muito dela e, sobretudo da sua forma de estar. Essa menina faz-me lembrar quando comecei a dar os primeiros passos na música. Era sempre no período da tarde. Vendia mancarra e mandioca para a minha mãe nos becos de Cupilum.
As meninas todas estão de parabéns porque estão a andar na estrada construída pela mana Dulce e com grande suor, porque não podem imaginar tudo aquilo que eu ouvi e os nomes que a chamavam, quando estava a construir esse caminho para as meninas que agora cantam.
OD: Além da música  o que é que a senhora faz?
DN: Além da música eu trabalho, mas isso também não é assim um trabalho. Estou a dar a minha contribuição numa agência de microcrédito. Prático o desporto e gosto de navegar na internet nos tempos livres.
OD: A senhora foi detida e torturada durante o golpe de 12 de Abril de 2012, pelos militares. É verdade e, porquê?
DN: Sim é verdade. Eu fui detida por militares que me levaram para o Estado-Maior, onde me torturaram e puseram-me numa cela em que se encontravam 16 homens e eu era a única mulher. Nessa cela que fazíamos tudo. Infelizmente até agora não sei o porquê da minha detenção. Não insultei ninguém e não sei porquê é que fizeram isso comigo.
Deixo tudo com “DEUS” todo o poderoso para fazer a justiça. Não tenho forças e nem poder para fazer nada, mas sei que tenho “DEUS” e acredito na justiça divina.
OD: Dulce é militante do PAIGC?
DN: Sim, eu sou membro do Comité Central do PAIGC…
OD: A senhora é considerada cadoguista. Confirmas?
DN: Sim. Eu defendo que sou apoiante e admirador de Carlos Gomes Júnior, portanto sou cadoguista a cem por cento…
OD: Será que é fácil conciliar ser artista e um dirigente político?
DN: Sim, porque eu sei separar as coisas. Sei comportar-me como artista e como político, portanto não exagero.

Por: Sene Camará/Assana Sambú